Para o Judiciário, é preciso defender a democracia

Foto: Antônio Augusto/SECOM/TSE

Brasília | 30 de junho de 2023 | por Leonardo Barreto

Para entender objetivamente. O problema que levou à inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro não foi falar mal do TSE para representações de governos estrangeiros e colocar em dúvida a lisura da condução das eleições no Brasil. A questão, segundo o ministro Benedito Gonçalves, foi Bolsonaro ter feito isso dentro de um prédio público e usando uma TV estatal para transmitir a reunião. Daí o abuso de poder. Se tudo tivesse ocorrido a partir de convites privados, na mesa de um restaurante, pagos com o cartão de crédito pessoal (e não corporativo) de Bolsonaro, então tudo estaria bem.

E como esse evento, que não envolveu pedidos de voto, se conecta ao processo eleitoral, a ponto de tornar Bolsonaro inelegível? Benedito Gonçalves, com um relatório de 400 páginas, defende que o caso era um ato preparatório para o questionamento dos resultados das eleições por parte do ex-presidente e, talvez, a justificativa para um golpe de Estado após sua provável derrota. Por isso, foi importante para Gonçalves a inclusão da “minuta golpista” obtida com um auxiliar do ex-presidente, Mauro Cid, no processo, pois ela, em tese, materializa sua narrativa.

Concordar ou não com o objeto da denúncia, o voto do relator, a culpa de Bolsonaro, a consistência das provas, se o desvio foi ou não materializado, enfim, trata-se de algo ordinário em qualquer investigação ou processo jurídico (embora um voto de 400 páginas para dizer que o problema foi que o evento usou recursos públicos passe um recibo de fragilidade). A questão relevante, no entanto, é o peso institucional que se deseja dar ao julgamento, com a fixação de das regras do jogo daqui para a frente num sentido mais amplo que envolve (i) impor limites às críticas que se pode fazer aos atores constitucionais (principalmente TSE e Judiciário); (ii) definir regras para o questionamento do processo eleitoral; (iii) deixar clara a responsabilidade de atores políticos pela manutenção do status quo; (iv) desincentivar discursos políticos anti-establishment e; (v) incentivar a moderação das facções políticas, que devem se ater ao diálogo institucionalizado e submeter eventuais críticas e questionamentos a uma dinâmica reformista já prevista pelo sistema, evitando tons disruptivos.

É mais fácil perceber esse debate em termos de Lula e Bolsonaro, como um mecanismo que corre em favor de um em detrimento de outro. Mas não é bem assim. Trata-se de um movimento mais amplo, liderado por um pensamento hoje dominante na cúpula do Judiciário, de que é preciso, sem trocadilho, defender a democracia da democracia. Explica-se: em agosto de 2022, uma ministra do Tribunal Constitucional alemão, Sibylle Kessal-Wulf, esteve no Brasil para palestras, sendo uma delas feita no STF. Em uma de suas falas, a magistrada tentou responder o que fazer para evitar que esta geração seja marcada por um manejo desregrado das instituições democráticas, na qual se perdeu os

“limites e o respeito” e desenvolveu o conceito de uma “democracia defensiva” na qual deve-se agir ativamente contra quem ameace a ordem estabelecida.

Nesses casos, segundo ela, a liberdade de expressão não pode servir como um escudo para ações que possam deteriorar as instituições democráticas.

Bolsonaro, hoje, é uma figura derrotada e que morre de medo da prisão, como demonstrou a forma como abandou o país no final de 2022 e a falta de vitalidade da sua defesa no TSE. Almeja apenas manter alguma influência eleitoral para que continue sendo interessante para o PL pagar sua defesa nos muitos processos que responde e manter seu núcleo familiar em cargos na Câmara e no Senado. Mas, mesmo assim, o TSE resolveu não perder a oportunidade de condená-lo em razão do efeito pedagógico que seus ministros esperam que essa decisão tenha sobre os extremos ideológicos e outros outsiders de plantão. Esperam que fique claro que há limites que não podem ser cruzados.

Por isso, é caricato, mas também simbólico, que a culpa imputada a Bolsonaro esteja apenas no uso do Alvorada para a reunião com os embaixadores. Caricato porque a ideia de abuso de poder nesta situação é pueril, tola, considerando tantas outras coisas que foram feitas usando o aparato do Estado e de posições privilegiadas de poder para virar votos nesta e em outras eleições. Simbólico porque mostra que o Judiciário está empoderado, orgulhoso de sua missão, a ponto de usar a desculpa qualquer para afirmar sua autoridade contra quem quiser jogar “fora das quatro linhas” que, por sua vez, são definidas sob a sua crescente supervisão.