Reunião “zera” relação entre Lula e Lira, mas o jogo está longe de acabar

Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Brasília | 21 de fevereiro de 2024 | por Rodney Amador

Às vésperas do Carnaval, logo após uma entrevista em Minas Gerais na qual havia reconhecido que Arthur Lira (PP/AL) poderia ter razão em alguns pontos de sua reclamação, Lula reuniu-se com o presidente da Câmara para colocar os problemas em pratos limpos. O resultado foi o que boa parte dos analistas consideraram como um armistício no conflito que pontuara toda a primeira semana de fevereiro, principalmente após o discurso de Lira durante a abertura do ano legislativo, visto pelos interlocutores de Lula como agressivo. 

Segundo fontes ligadas tanto a Lira quanto a Lula, foram abordados uma série de temas: promessas de emendas feitas por ministros versus entrega de apoio nas votações importantes para o governo, a ausência do presidente da Câmara no evento do dia 08/01 versus seu reconhecimento pioneiro da vitória de Lula nas eleições, entre outros temas. O resultado da conversa, para muitas destas fontes, teria sido positivo. Ambos, Lula e Lira, teriam aceito a relação, a partir deste ponto, como “zerada”, isto é, começando de novo, dispensado o registro anterior de pontuações e agravos de cada lado. Primeiro evento político após a retomada das atividades em Brasília, a reunião pode dar o tom das relações entre Executivo e Legislativo em 2024 – sobre as quais muitos pontos ainda estão em aberto.

A primeira consequência, apontada pela maior parte dos analistas é que haverá, pelo menos no discurso, uma nova relação entre Executivo e Congresso, particularmente no que diz respeito à Câmara, onde o problema está alojado. Afinal, foi nesta casa, muito mais do que no Senado, que o governo encontrou resistência a suas propostas. A partir de agora, o ministro da Secretaria das Relações Institucionais, Alexandre Padilha (PT/SP), não será o ator privilegiado na condução da relação entre o governo e os deputados. Alvo especial das críticas de Lira, Padilha agora partilhará sua atribuição com outros interlocutores, em especial o ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa (PT/BA). Na verdade, um dos principais saldos positivos para Lira da reunião do início do mês foi a promessa de uma “linha direta” com o presidente, através do celular do seu ajudante de ordens (em caso de problemas urgentes). 

Para qualquer um que acompanha de perto os resultados do governo nas votações, fica evidente que algo precisava acontecer para desenrolar as relações entre os dois poderes. Apesar da comemoração de Padilha de que o governo tem aprovado suas matérias, seus índices de Sucesso Legislativo (i.e. aprovação de proposições de sua autoria) têm sido os menores de toda a série histórica, que remonta ao governo de Fernando Henrique Cardoso. Pelo contrário, analisando a série, nota-se que o único ponto alardeado pelo ministro a ser comemorado é que o governo Lula III foi o que mais aprovou Projetos de Lei. Mas o que isso significa? Os bons números apresentados neste quesito indicam que o governo tem mais sucesso quando decide apresentar um projeto de lei para discutir com o Congresso, ao invés, por exemplo, de uma Medida Provisória, sobre a qual o Congresso tem que deliberar  sob a pressão da vigência imediata da matéria e do seu prazo. Não por acaso, isso expressa o que Lira havia dito ainda em 2022, quando deu início ao GT que discutiu a possibilidade de se reformar o sistema de governo brasileiro na direção do semipresidencialismo: “Devemos sair do governo de coalizão para um governo de gestão dupla com um Congresso responsável pelo que vota”. 

Um “governo de gestão dupla”, no entanto, envolve mais do que apenas discutir projetos de lei. Envolve discutir quem terá prerrogativa sobre uma das ferramentas mais importantes de Brasília: o Orçamento Federal. Não à toa, esse foi o ponto mais destacado do discurso de Lira: “Não fomos eleitos, nenhum de nós para sermos carimbadores […]. Não é isso que o povo brasileiro espera de nós. O orçamento da União pertence a todos e todas e não apenas ao Executivo porque, se assim fosse, a Constituição não determinaria a necessária participação do Poder Legislativo em sua confecção e final aprovação”. O ponto é absolutamente crucial, quem decide sobre o Orçamento, decide sobre diversas coisas: sucesso eleitoral, implementação de políticas públicas, priorização de políticas e de seus públicos-alvos, tempo de implementação etc. Isso se intensifica com a antecipação das eleições municipais, de modo que o que se verá em 2024 é a disputa de quem tem, literalmente, o talão de cheque nas mãos. Por isso, não surpreende que a primeira reunião importante do ano tenha tratado deste assunto – isto é, o pagamento de emendas e o empenho de recursos prometidos pelo Executivo. 

Isto nos leva a segunda consequência da reunião entre Lira e Lula: ela será efetiva e suficiente? Há pelo menos duas bombas já colocadas sobre a mesa que deverão ser analisadas nos próximos dias. De um lado, passará o governo a “cumprir seus acordos”, como tem cobrado Lira? Um primeiro teste será a liberação de recursos do Ministério da Saúde, que Lira chegou a cobrar nos últimos dias via requerimento oficial da Câmara à pasta (a primeira vez que fez isso na presidência da Casa). A segunda será a votação dos vetos de Lula à Lei de Diretrizes Orçamentárias, que excluíram do texto as previsões, aprovadas pelos parlamentares, de um cronograma de execução e de um valor 5,6 bilhões mais gordo para as emendas parlamentares. Este primeiro não é trivial. Na verdade, trata-se de uma das maiores inovações institucionais sugeridas pelo Congresso desde a impositividade das emendas, promulgada em 2015. A prerrogativa da decisão sobre o momento de execução do Orçamento, num ano eleitoral, é essencial, e tanto governo quanto parlamentares sabem disso. Só se ambas essas bombas forem devidamente desarmadas é que se poderá dizer que a reunião foi um sucesso (“conhecereis a árvore por seus frutos”). 

Além disso, entre as possibilidades pensadas para uma nova relação entre governo e Câmara, consta o empoderamento do Conselho da Coalizão, estrutura criada por Lula para agregar as lideranças partidárias aliadas para discussões sobre os rumos políticos do governo. Se priorizado pelo governo e seus interlocutores políticos, esse novo fórum poderia impactar significativamente o poder de barganha de Lira, que muito depende de sua posição como ponte entre o governo e o Congresso. Com isso, o governo, potencialmente, o contornaria e passaria a acessar diretamente os parlamentares, como tentou fazer quando se propôs o direcionamento das emendas parlamentares para as obras do PAC. O empoderamento do Conselho poderia ser esse atalho sob a Mesa de Lira? Só os próximos eventos poderão confirmar. 

Ao mesmo tempo, está cada vez mais em jogo a questão, também em aberto, da sucessão de Lira, marcada para o início do próximo ano. Como lembrou o colunista Ranier Bragon na Folha de São Paulo, há uma vontade dentro do PT de que o governo cozinhe o presidente da Câmara em banho-maria até a sua saída definitiva. Esse intervalo lhe asseguraria o tempo para pensar em um nome que devolvesse ao governo a prerrogativa total sobre o Orçamento. Difícil saber, no entanto, qual dos nomes já aventados pela mídia poderia fazer este trabalho, após pelo menos três anos de um novo modelo de gestão no qual o Congresso tem mais autonomia e mais recursos para gastar. Até que estes problemas venham à tona, no entanto, o jogo permanece “zero a zero”.